“M”, de Cocó
Crónica da médica dentista Cátia Íris Gonçalves, publicada na edição de janeiro.
Antes de mais, desculpa, Mã, havia temas tão bons e tão dignos para eu explorar, eu sei.
Ia mesmo escrever sobre os sentimentos de responsabilidade quando somos incumbidos das diferentes obrigações profissionais (académicas/clínicas/científicas), mas meteu-se-me esta ideia fixa na cabeça e já sabes como sou – envergonho-te sempre com esta faceta, defeito, feitio, costela de neurose e coprolalia que tenho. Ainda que não me tenha sido detectado nenhum síndrome ou anomalia metabólica, insisto com a premissa de que, tal como as notas vão do zero ao vinte (ou do seu equivalente em percentagem, do zero ao cem por cento), também a riqueza da língua portuguesa tem que contar com a sua dose devida de calão, sob pena de se estreitar o raio de acção da expressão fiel dos nossos sentimentos e até pensamentos racionais.
Sei que fica mal em devidas situações e lugares, principalmente a uma fêmea, expressar-se com recurso a palavreado “vulgar”, mas a vida não o é também, tantas vezes? E porquê desviarmo-nos do “realmente”, em virtude de uma Virtude branqueada que esconde germes perniciosos na sua alvura?
Passo a explicar – de tanto repetida a política da correcção, da ordinarice fantasiada com termos eloquentes, transtornamos irreversivelmente o carácter dos nossos pares mais permeáveis – água mole em pedra dura tanto bate, até que fura: a mentira, a calúnia, a desonra, a maldade vestem, por vezes, roupagem tão fina, tão exclusiva, que a imoralidade se torna, ao longo do tempo e aos olhos dos aparentemente mais insuspeitos, normal ou chique, penalizando quem pega no touro pelos cornos só por que disse “cornos”.
Sabes, quando me refiro a Ti, Mã, sublinho sempre o facto de seres uma Senhora – não uma desbocada como eu – uma rebelde do seu tempo, com as suas batalhas travadas sim, mas muitíssimo educada e distinta – não consigo fazer-te jus. Tenho dentro de mim uma coisa que fermenta, a velocidade ultra-sónica, como o destartarizador e explode como válvula de panela de pressão, sem filtro coador de impurezas, o que, muitas vezes, afecta negativamente este status quo de falso puritanismo, pervertido, esta porcelana cheia de bolhas, soluções de continuidade e empenos que a sociedade aceita como normais ou aceitáveis”.
Tendo frequentado escolas de bairro e mais chiques, creio que me converti ao emprego eclético de um português que se quer fiel, objectivo e claro, mais do que escorreito. Sei como ficas triste e incomodada quando lês alguns dos meus escritos ou ouves algumas das minhas exclamações ou interrogações, mas sabes que Te amo e Te respeito e que, por isso, não posso deixar que me desconheças, que não me saibas verdadeiramente, com todos os traços de imperfeição e dúvida que tenho, de revolta, de ingenuidade, de infantilidade, se quiseres, mas de uma incontornável honestidade que, com muito esforço e luta diária, vou conseguindo manter, porque a vida é nada sem a genuinidade que nos caracteriza, partindo sempre do princípio que não estamos a lesar ninguém – ou, pelo menos, gratuitamente.
(…)
Leia a crónica completa na DentalPro 120.
19 Janeiro, 2018
Opinião