“Tive que lutar contra uma série de ideias feitas”
DentalPro: O seu trabalho no Instituto do Câncer Dr. Arnaldo Vieira de Carvalho constitui um enorme desafio humano e profissional.
Sílvio Boraks: Logo no primeiro ano de faculdade apaixonei-me por esta área de intervenção. Visitei o Hospital do Câncer com um grupo de alunos e gostei tanto que, no ano seguinte, comecei a trabalhar lá enquanto voluntário. Hoje sou responsável pelo Departamento de Estomatologia e Cirurgia Bucomaxilofacial. Mas, no início tive que lutar contra uma série de ideias feitas. Primeiro mostrar ao médico que tínhamos competência para actuar neste domínio e depois ultrapassar o facto de esta ser uma área mais pesada, em que quase todos os dias contamos a uma família que um parente tem cancro e como se vai processar o tratamento, que é geralmente bastante duro.
DP: E como reagem as pessoas?
SB: A primeira pergunta que as pessoas fazem não é se o doente vai morrer, mas se é contagioso. A minha função passa por convencer as pessoas a realizar o tratamento adequado, o que, tendo em consideração a emoção que rodeia estas vivências, exige muita firmeza e sangue frio. Muita gente não imagina que a medicina dentária pode evidenciar esta abrangência. A boca não tem dono, o auxílio parte de quem está apto. A remoção de um cancro na boca é da responsabilidade de um cirurgião, mas conta sempre com a presença de um médico dentista na equipa, já que passa por ele a tarefa de reconstrução.
DP: Qual o caso mais complicado que lhe chegou “às mãos”?
SB: Recordo a história de um doente com cancro na boca que fez mais de 30 cirurgias, removendo uma grande porção de tecido. Ele era sapateiro e, quando regressou ao trabalho, ninguém lá ia levar sapatos. As pessoas tinham medo de apanhar a doença e não queriam olhar para o rosto dele. Assim, ele refugiou-se no interior da sapataria e contratou um empregado para receber e entregar as encomendas. O próprio neto receava beijá-lo. O hospital transformou-se no melhor lugar para ele e inventava inúmeras cirurgias para regressar. Abandonado pela família e amigos e rejeitado pela sociedade, passou a viver cá.
Sílvio Boraks nasce a 14 de Agosto de 1946 em São Paulo, Brasil. Com apenas cinco inicia-se na televisão como actor. Em 1955 participa na famosa série brasileira, Sítio do Picapau Amarelo, interpretando o porquinho Marquês de Rabicó. A carreira no teatro acompanha a sua juventude e leva-o a prosseguir estudos em Inglaterra. A entrada para Odontologia na Universidade de São Paulo deve-se à sua mãe, que o inscreve no exame de acesso à faculdade, onde ingressa em 1967. Cedo se interessa pela patologia bucal e actua como voluntário no Hospital do Câncer. Formado em 1971, assume a direcção do departamento de Estomatologia e Cirugia Bucomaxilofacial do Instituto Dr. Arnaldo Vieira de Carvalho. As artes cénicas acompanham a sua actividade enquanto médico dentista e, ainda em 2006, integra a longa-metragem O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias.
29 Junho, 2010
Entrevistas