“Em Portugal, ter uma clínica dentária é um acto de loucura”
A Associação Independente de Médicos Dentistas (AIMD), presidida por Nuno Meneses Gonçalves, e a Associação Nacional de Clínicas (ANC), liderada por André Pereira Simões, apelam aos grupos parlamentares que seja colocado um requerimento para suspensão e revisão do Decreto-Lei n.º 108/2018, que inclui a radiologia oral no mesmo foco de fiscalização da agricultura e do mar, assim como do ordenamento do território:
“Em Portugal, ser proprietário de uma empresa privada é um acto de coragem. Já ter uma clínica dentária, é um acto de loucura. Num período em que as clínicas dentárias têm sido alvo de agressiva regulamentação e taxação – dir-se-ia, melhor, de excessiva burocratização e cobrança de impostos directos e indirectos – eis que, ainda durante a batalha infindável contra a desvalorização do acto médico, contra as empresas de planos e cartões de saúde e os actos médicos gratuitos, surge o ataque aos exames complementares de diagnóstico (ECDs).
Desde os primórdios das clínicas dentárias, a radiologia tem sido (e deve ser) regulada, mas assim o era, de forma exequível, desburocratizada e simples. Através de contratos de licenciamento e verificação periódica dos aparelhos radiográficos com empresas para o efeito, a Direcção-Geral de Saúde (DGS) monitorizava a segurança dos procedimentos imagiológicos destes estabelecimentos de saúde, através de licenciamento, verificação periódica e manutenção de equipamentos e registos de dosimetria. Nos últimos meses, sob o preceito da Directiva Europeia 2013/59/Euratom, transposta para o Decreto-Lei n.º 108/2018, assistimos a uma autêntica caça às bruxas, por iniciativa de um novo organismo da Administração Pública: a Inspeção-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento Território (IGAMAOT).
Parece ser legítimo perguntar: porque terá sido a radiologia oral englobada no mesmo foco de fiscalização da agricultura e do mar, ou até do ordenamento do território? Que competências terá este organismo na protecção radiológica das clínicas dentárias?
O IGAMAOT é um organismo do Estado Português que foi criado em 2012, sob a tutela do Ministério da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território. Para o propósito desta exposição, relevamos que, de acordo com o Decreto-Lei n.º 23/2012 de 1 de Fevereiro, além do financiamento através do Orçamento de Estado (que tem vindo a ser gradualmente reforçado), este órgão inspector dispõe também de receitas provenientes de coimas aplicadas, processos de contra-ordenação e custas e juros que destes advêm. Daqui, poder-se-á extrapolar que existe um incentivo à “caça à multa”, considerando que o orçamento previsto para a sustentabilidade financeira do IGAMAOT depende em grande instância da aplicação de coimas. Mais concretamente, no plano de actividades de 2020, estimaram-se 2.350.000,00 € de receitas próprias, por via de taxas e coimas aplicadas. Será legítimo assegurar a saúde financeira de um organismo da administração pública através desta via?
Com a chegada da Directiva Europeia 2013/59/Euratom, que introduziu alterações significativas em matéria de protecção radiológica e de resposta a situações de emergência, num assunto que pedia reflexão ponderada, aconselhamento jurídico e consulta de especialistas e profissionais da área da Saúde, para a aplicabilidade razoável da prática corrente às normativas, o Estado Português transpôs a mesma directiva, quase palavra por palavra, para o ordenamento jurídico nacional, em 2018. Algo que, na maioria dos países europeus, não só não se verificou com tamanha complexidade, como já havia estruturas de suporte para assegurar a normal aplicabilidade da Directiva.
Para a fiscalização do cumprimento do novo Decreto-Lei n.º 108/2018, incumbiu o IGAMAOT desta missão, que, por sua vez, em 2019, criou a Equipa de Radiações Ionizantes (EM RAD), composta por dois chefes de divisão e doze técnicos de inspecção. O organismo refere: « O ano de 2020 traz à IGAMAOT novos e relevantes desafios decorrentes da sua designação como autoridade inspetiva em matéria de proteção radiológica, nos termos do Decreto-Lei n.º 108/2018, de 3 de dezembro, com a atribuição ex novo de funções sem antecedente ou histórico neste organismo ». Se a própria administração reconhece a invulgaridade desta nomeação, existirá um motivo lógico para o sucedido?
Será o exercício da medicina dentária o novo desastre nuclear do século XXI? Face à surpreendente possibilidade da cobrança de coimas na ordem das dezenas de milhares de euros, podendo chegar às centenas de milhares, não será financeiramente mais razoável encerrar os consultórios médicos? Estes valores são ajustáveis às situações descritas no não cumprimento do Decreto-Lei nº 108/2018?
Os utentes ver-se-ão, agora, acudidos por um médico dentista que está mais preocupado com a burocracia legal e com quem o visita inesperadamente, com as possíveis coimas astronómicas que poderá vir a pagar, do que com o tempo dedicado à sua formação contínua, com o rigor e qualidade do procedimento médico que terá de realizar. Estes custos irão refletir-se no valor das consultas e, por conseguinte, fragilizar ainda mais o acesso aos cuidados de saúde?”.
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12 Março, 2021
Medicina dentária