A par da Paridade

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Crónica da médica dentista Cátia íris Gonçalves a publicar na DentalPro 149, brevemente disponível:

Gostaria de aproveitar este pequeno canto pretensamente literário para dissecar esta palavra de som tão feio.

Antes de qualquer outra coisa – soa mesmo muito mal. Foneticamente próxima de parir, parida, parideira e outras palavras que, mesmo quando inocente e contextualmente bem aplicadas, arranha o tímpano e o subconsciente, não sei explicar porquê, deixando essa matéria para a psiquiatria, psicologia e ciências humanísticas (note-se que, no Ribatejo, “paridade” se aplica a um rebanho de ovelhas paridas).

Depois, a lei da paridade parece aquele lanço que damos para trás antes de saltar para a frente. Ou aquele golpe de chicote que se dá na inflexão do movimento que aplicamos num objecto flexível e que contraria bruscamente a direcção final da trajectória.

A paridade, ou qualidade daquilo que é par, igual ou semelhante, qualidade de valor que pode ser equiparado, usado na aritmética, na economia (taxas de câmbio) ou na física, deixa de ser qualidade, para passar a ser obrigação quantitativa numa lei orgânica da Assembleia da República Portuguesa, a qual foi recentemente alterada (29 de março de 2019), passando a citar:

“1 – Entende -se por paridade, para efeitos de aplicação da presente lei, a representação mínima de 40% de cada um dos sexos, arredondada, sempre que necessário, para a unidade mais próxima”.

E, ainda mais complexo, “2 – Para cumprimento do disposto no número anterior, não podem ser colocados mais de dois candidatos do mesmo sexo, consecutivamente, na ordenação da lista”.

Sabendo que esta lei se aplica à Assembleia da República, à constituição do Parlamento Europeu e aos órgãos eletivos das autarquias locais, bem como à lista de candidatos a vogal das juntas de freguesia, fiquei a saber, ignorante política que sou, que também se aplicava ao processo de candidatura das listas à Ordem dos Médicos Dentistas.

Não me cabendo o juízo jurídico acerca do tema, permito-me ter um sentimento e opinião acerca do mesmo, que já descrevi metaforicamente atrás e aos quais acrescento ainda que sinto como uma antítese da corrente meritocrática que quem me conhece sabe que defendo, desde sempre.

Uma qualidade, para o ser, terá que o ser natural e objectivamente, sem imposições – não em número, não em género, nem em ideologia de género, porque então, por aí, dávamos muito mais voltas complicadas a esta questão, deixando cair por terra a justa aplicabilidade actual do conceito – a paridade deverá estar contemplada a montante, no acesso; e não a jusante, na reserva obrigatória e numérica dos lugares, desvirtuando a igualdade que se pretende no processo – e que partiu de pressuposto para a tal pretendida igualdade, no sentido lato e não jurídico.

Como mulher, não me sinto intimidada por nenhum homem ou grupo de homens, talvez por ter nascido numa paridade qualitativa que nunca foi contabilizada (a única que é saudável) lá em casa. Compreendo que haja quem se sinta intimidado/a, como há quem o sinta com pessoas altas, gordas, magras, bonitas, deficientes, de cor, loiras, canhotas ou estrábicas ou com qualquer outra característica que se possam lembrar. Mas sinto tristeza quando é aprovada uma lei que obriga à reserva de lugares específicos, como se partíssemos todos do princípio que se assim não for, vai haver abuso, sobranceria de qualquer género, seja ela, neste caso, sob forma de machismo ou feminismo.

Como sabemos, há áreas profissionais e ocupacionais com uma expressão numérica maior num sexo do que noutro, sem que isso seja sinónimo ou reflexo de mau julgamento, mau desempenho ou desequilíbrio colectivos, pela simples diferença do que acomodamos entre pernas ou outras zonas do corpo. Desgosta-me toda e qualquer obrigação que deveria não o ser e esta reflecte, particularmente, a natureza segregacionista de algumas mentes perversas – de que a maioria prejudica a minoria, quando estamos a falar de homens e mulheres que partilham a mesma profissão, as mesmas ambições, desejos e dificuldades, quando existem outras características intelectuais, de vivência, particulares ou representativas de algo maior do que a roupa interior que, essas sim, podem ser bem mais importantes e decisivas para o objectivo que se pretende.

Este princípio transformado em lei é, para mim, um mau princípio. Em primeiro lugar, porque não pode ser obrigatório um conceito que deve estar implícito, por senso comum, que é o da igualdade de oportunidades – de aptidões, de casualidade em termos de acesso a um posto ou cargo, independentemente das características biológicas (de género ou outras) – e que deveria implicar, na sua essência, tão somente o mérito, a competência, o aporte de valor, a idoneidade. Em segundo lugar, porque temos muito mais características que nos definem individualmente, para além do sexo estrutural ou funcional – visto que esta lei deixa, também, de fora, situações intersexo, hermafroditas e outras, ainda mais comuns e discutíveis – não tendo, passo a expressão, nada a ver o rabo com as calças.

Estando este princípio numérico promulgado por lei, resta-nos acatá-lo enquanto for vigente e consolarmo-nos com a ideia de que poderia ser mais difícil de cumprir o requisito – graças a Deus não estamos a constituir listas para a Ordem de Profissionais de Educação de Infância (apenas 1% são homens) ou Ordem dos Operários da Construção Civil (menos de 10% de mulheres).

(Será só por isso que estas últimas Ordens não foram criadas, tal como aconteceu com a não aprovação das Listas a concurso para a Ordem dos Enfermeiros?)

8 Junho, 2020
Opinião

 
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