Poucas dívidas, muitas dúvidas

Crónica da autoria de Cátia Íris Gonçalves, médica dentista, publicada na DentalPro 185.
“Muitas vezes me pediram — ainda que eu não seja assim tão experiente — conselhos para colegas mais novos.
Esses pedidos atormentam-me, porque me sinto na obrigação de dizer algo genial, mas, no fim, o que acabo por oferecer são lugares-comuns, truísmos. Os coelhos que tiro da cartola já não são novos, mas são verdadeiros e, como lembrava Kerouac, “todos os truísmos são verdadeiros”, porque tocam a natureza universal das coisas.
Recentemente, porém, ocorreu-me um pensamento persistente, desses que nos dão fisgadas atrás dos olhos até os fixarmos no papel: uma observação de alguém que já tem um pé — relutante mas assente — no limiar da meia-idade, incomodada com um lifestyle de ostentação de alguns colegas mais jovens.
Antes que se adiantem em críticas viperinas, aviso: nada tenho contra (antes tudo a favor de) estatuto social elevado, desde que sustentado por inteligência, trabalho e educação. Apoio convictamente a justa recompensa da boa prática. Mas não raramente, o cenário excede largamente o desempenho. E o que vejo hoje é um status menos subtil, mais grosseiro, mais ruidoso e fanfarrão exposto em HDR com ângulos de influencer: ostentar virou arte, mesmo quando tenta ser negligé.
O resultado previsível? Vidas hipotecadas, dívidas em cadência crescente, quando a vida adulta ainda mal começou.
E, no reverso desta pressa em subir à ribalta material, vive a ausência da dúvida. A dúvida — essa onça cautelosa que pisa o chão como se testasse a gravidade — parece ter sido extinta. É mais fácil contrair crédito para um Porsche, um Hublot ou umas Maldivas do que pôr em causa um protocolo clínico, rever conceitos teóricos ou mergulhar mais fundo no próprio saber.
Cada um de nós carrega dentro de si territórios inexplorados — podem ser mais ou menos rasos, sinuosos, nonsense ou brilhantes. Mas suspeito que muitos, para lá chegar, terão de largar primeiro os excessos que carregam.
Dívidas aprisionam.
Dúvidas libertam.
Quem deve, vive encostado ao banco.
Quem duvida, vive encostado ao infinito.
A dívida é vaidade parcelada;
a dúvida é sabedoria a pronto.
Porque o peso do supérfluo não dá asas: crava-nos ao solo. A dúvida é a verdadeira propulsão — o motor que, ao contrário da dívida, não se paga em prestações, mas em descobertas.”
6 Outubro, 2025
Opinião