Ser delegado

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Crónica da médica dentista Cátia íris Gonçalves publicada na DentalPro 143:

Esse personagem real que, mal chegamos à clínica, já está sentado na sala de espera com um sorriso, aguardando-nos com uma malinha e que, ao contrário dos pacientes, diz que vela o tempo que for preciso por 5 minutos da nossa atenção.

Um delegado de propaganda médica tem uma vida quase tão ingrata como um médico dentista. Também tem que lidar com pessoas (pior: médicos dentistas), tem que saber do seu produto, tem que saber de gestão, psicologia e marketing. Tem uma costela de ciência e duas de publicidade. Mais uma ou duas vértebras de psiquiatria.

Tem um carro tão desarrumado como o nosso. Conhece bem o país e os melhores cafés e restaurantes das terras. Utiliza quilómetros para descontar nos impostos e sapatos confortáveis para calcorrear as mais improváveis e acidentadas ruas. Come a horas impróprias comida de qualidade duvidosa e aprendeu a sobreviver a elevadas doses de cinismo e hipocrisia. Tem um doutoramento em simpatia e outro em multas de estacionamento. Tem varizes, a coluna vertebral quase tão estragada quanto a nossa (de carregar malas de panfletos e material) e contracturas no músculo risório. Tem conta aberta na Samsonite e migalhas e papéis a ornamentar os estofos do carro. Peritos em assertividade, persuasão, persistência e paciência, sabem o que custa a vida, com todos os seus desconfortos e reveses, o que custa conquistar umas horas de sossego e silêncio, poder soltar uma lágrima na paz da solidão, calar e sorrir quando apetece esmagar crânios como se fossem cascas de sapateira recheada.

Conhecem a química daquilo que divulgam até à exaustão molecular, a aplicação clínica mais convincente, as falhas que a empresa grande não conhece ou teima em não ver e sabem voltar atrás, às suas malas ou viaturas, para nos deixar uma coisa qualquer que não têm a certeza de que vá ser vista, experimentada, prescrita, valorizada.

Alguns apoiam as nossas mais disruptivas loucuras, formações, cursos e práticas clínicas, entre idiossincrasias de egos, indústria, valor e vaidade, tentando, no final do dia, levar cada barco a seu bom porto, muitas vezes sem outro reconhecimento que não o do dinheiro alheio numa conta alheia, ao assegurar o destino económico de quem os emprega. 

Conhecem a história pessoal de quem trabalha na recepção, na assistência, no backoffice, na direcção e não se descosem, porque sabem o que é ter de vestir a máscara do trabalho para poder cumprir a sua dignidade financeira no fim do mês.

Sabem segredos do sucesso profissional de um modo geral, como por exemplo como reciclar energia e reinventar interpretações a cada cara nova que visitam – ainda que os produtos tenham sido os mesmos todo o dia, toda a semana, todo o mês ou ano.

Os chatos dos delegados são um pouco como nós, mas mais humildes. E, na maioria das vezes, muito menos chatos.

Muito obrigada a todos eles, especialmente aos que impulsionam a cansativa vertente da formação, aos que zelam pelo nosso sucesso e dos nossos tratamentos.

Mesmo àqueles (ou especialmente àqueles) que voltam ao carro, apenas para nos poder deixar um fio dentário ou um tubinho de pasta.

16 Janeiro, 2020
Opinião

 
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