OMD 2019: ecologia e biologia vs economia intelectual
Crónica da médica dentista Cátia íris Gonçalves publicada na DentalPro 144:
Mais um ano, mais um imponente congresso da OMD.
Desta vez, seguindo as tendências ambientais actuais, o encontro foi verde – pelo menos, parcialmente verde, se pusermos de lado os inevitáveis, obsoletos e fastidiosos panfletos publicitários – apostando na desmaterialização dos ingressos, blocos de notas e outros, oferecendo ainda uma garrafa de vidro (apelando à reciclagem) que os congressistas podiam encher em fontes de água potável, distribuídas estrategicamente pelo recinto – e que recinto! – ou, em alternativa, com espumante, gin ou vinho num dos (muitos; imensos; avassaladores) stands da Expodentária – uma boa opção para quem quiser analgesiar os pés, o discernimento e o cansaço, inerente a um evento cada vez maior e mais extenuante.
Para quem se transtorna com aglomerados humanos, esta não é uma ocorrência científica/comercial/social propriamente relaxante: na exposição, zona de passagem obrigatória mesmo para aqueles 7 ou 8 colegas que só lá vão pela ciência, encontramos caras conhecidas, antigos amigos, companheiros de faculdade, mulheres e maridos, as suas crianças, assistentes, técnicos, comerciais, enfim – basicamente todo o ser humano do universo que nos consegue fazer não esquecer de quem somos profissionalmente e do que fazemos em todos os restantes dias do ano. É uma espécie de retiro intensivo para dentro do (já por si só) vórtex médico-dentário, com pinceladas de drama, poker, marketing, intriga, maquilhagem e estilismo (muitas vezes duvidosos), brutalmente metralhado por gargalhadas de sinceridade dúbia, brindes, multimédia e artes do espetáculo (com fatos de polipropileno dignos de trapezistas); se bem que, em abono da verdade, honra seja feita à organização deste ano – por sorte ou não (espero que não) fomos poupados a muito espalhafato publicitário triste, comparando com outros congressos anteriores, onde não faltaram bailarinas de cabaret e anões albinos (ou confundi e seriam apenas congressistas?).
A agressividade comercial parece ter sido domesticada com Lorenins, tendo-se praticamente invertido os papéis – podemos observar delegados e comerciais aterrorizados e esquivos, embaraçados com a sofreguidão das solicitações de alguns dos nossos colegas – querem atenção, querem pastas, querem escovas, querem indicações, catálogos, demonstrações, planos de pagamento, descontos – o que deixa os pobres profissionais por detrás das marcas exaustos e fugidios, quase como se estivessem a ser perseguidos por psicopatas (há colegas a entrar furiosamente nos stands e a monopolizar as atenções para as suas questões, angústias profissionais e outras, à espera de uma solução milagrosa que neutralize as suas inquietações clínicas e não só).
Como numa mistura heterogénea de fluidos de diferentes densidades, conseguimos perceber os protótipos presentes nestes eventos anuais únicos, embora colonizados sempre pelos mesmos personagens – as alpinistas decotadas, os totós da faculdade, os VIPs fugazes e impactantes a lançarem os seus perfumes, os papa-congressos, os habitués do sistema, os engatatões e por aí adiante – incluindo a nova tendência transversal a todos estes grupos, os wannabes-trendsetters-selfies-masters.
(Já agora, quem disse que os telemóveis não poluem, de uma maneira muito peculiar?)
Cada grupo com as suas motivações – os estudantes, por exemplo, têm uma regra: obter, em amostras, o equivalente ao valor de inscrição no congresso (não saíram carregados por essa ordem de pensamento, nos últimos 2 anos: parabéns à organização também por isso: um valor de inscrição simbólico, desviando a dos seus associados a fonte de receita, onerando as empresas que se querem fazer representar).
Já os licenciados, querem fechar aquele negócio único que lhes prometeram as casas comerciais, com condições especialíssimas (pois estes acreditam ser, segundo algum critério obscuro, também extraordinários) sobre o já inerente desconto da “semana do congresso”.
Os restantes estão interessados nas demais atracções: as palestras, os palestrantes, os escândalos, o convívio, o passeio (já que o descanso não poderá ser uma das motivações), ver e fazerem-se vistos – razão da vida de muito ser humano solitário lá dentro da alma, característica comum a todos os grupos profissionais e não-profissionais (e não exclusiva dos médicos dentistas).
Da qualidade irrefutável de grande parte dos palestrantes e das suas comunicações, infelizmente pouco se fala – isso parece ser apenas um pormenor; ainda que eu o tenha, satisfeita, testemunhado. Isto de sermos muitos também tem que ter vantagens: poder convidar pesos-pesados para o nosso emblemático congresso anual é uma delas. Se bem que estas escolhas podiam muito bem pecar por mais fracas, mais vazias ou pobres, o que não se tem verificado.
A parte técnica, tecnológica, logística, impecável.
A FIL, muito mais preparada e adequada a um evento deste calibre – tristemente, no meu Norte, os locais escolhidos para o albergar estão em franca dissonância para com os mínimos (refeições; comodidades; lugares sentados; etc.) que se impõem.
E muito mais haveria para apreciar, extrapolar, esmiuçar.
Um monumental congresso anual, com nota francamente positiva e após o qual podemos reflectir – sentir orgulho na organização, na nossa internacional qualidade enquanto povo e sector profissional e, por outro lado, uma apreensão envergonhada pela evidente assimetria relativamente à pequenez deste (por vezes) grande país. Isto foi aquilo que inevitavelmente ribombou na minha mente e dentro do peito.
Mas, sabemos que algo vai intrinsecamente mal com a classe quando a única ocorrência deste evento com impacto suficiente para ter sido falada durante semanas a fio foi, afinal… um cartaz infantilmente vandalizado.
4 Fevereiro, 2020
Opinião